Venezuela vive encruzilhada na economia: rumo ao socialismo ou volta ao capitalismo?

Enquanto políticas sociais dos últimos anos diminuíram brecha entre ricos e pobres, política econômica segue no meio do caminho entre prioridade ao controle estatal e manutenção dos vícios do petróleo

Por Juliana Afonso, especial para a Rede Brasil Atual
Segunda-feira, 7 de abril de 2014


A Venezuela vive dias incertos. Milhares de pessoas têm ido às ruas para protestar. Muitos se vestem de branco, empunham bandeiras tricolores e clamam a plenos pulmões pela saída do atual presidente Nicolás Maduro. Outros tantos se vestem de vermelho, empunham as mesmas bandeiras tricolores e gritam apoio ao governo. As manifestações começaram no dia 12 de fevereiro e, desde então, o país estampa a capa de importantes veículos nacionais e internacionais. Mas são poucos os que refletem esses dois cenários.

As revoltas contra o governo ganharam repercussão internacional. Elas marcam a insatisfação das elites, da classe média e dos estudantes sobre três pautas principais. A primeira tem a ver com o a insegurança crônica na qual vive a população. Segundo informe do Observatório Venezuelano de Violência, publicado em dezembro de 2013, foram registradas 24.763 mortes violentas no último ano, o que o classifica como um dos países mais inseguros do mundo. A segunda é a acusação de impedir a liberdade de imprensa. A terceira tem a ver com a situação econômica do país devido a alta taxa de inflação e escassez de alimentos.

Já as revoltas em prol do governo não correm o mundo com a mesma velocidade. São protestos tão grandes ou mesmo maiores que os da oposição. Essas manifestações são puxadas pelos setores mais populares da sociedade e defendem a permanência do atual governo, tendo em vista, principalmente, o grande investimento em políticas sociais, com resultados palpáveis: segundo dados do Banco Mundial, a porcentagem de venezuelanos que vivia abaixo da linha da pobreza caiu de 62,1% em 2003 para 31,9% em 2011. O país também detém a distribuição de renda mais igualitária da América Latina, medida pelo coeficiente Gini. Em uma escala de 0 a 1, sendo 0 o mais igualitário, o país alcançou o índice de 0,39. A título de comparação, o índice do Brasil é de 0,52.

Dinheiro que dá na terra

De caminho para uma assembleia popular na cidade de Barinas, capital do estado de mesmo nome, no noroeste do país, o motorista para em um posto para abastecer a caminhonete. “Enche o tanque”, diz ao frentista. Meus olhos se voltam imediatamente para o mostrador de combustível: 44 litros a míseros 3,20 bolívares, menos que 30 centavos de dólar.

Encher o tanque de um carro na Venezuela é mais barato que comprar uma latinha de refrigerante. Para muitos é uma perda de divisas. Para outros, inclusão. “O esforço da revolução é exatamente dar o petróleo para o povo”, esclarece o professor e presidente do Instituto de Estudos Latinoamericanos da Universidade Federal de Santa Catarina, Nildo Ouriques. Ele explica que o petróleo sempre foi apropriado pelos setores mais ricos do país. Hugo Chávez, que ficou no poder de 1999 até 2013, foi o primeiro a mudar a legislação e garantir não somente o acesso dos venezuelanos ao produto a preços módicos, a partir de políticas de subsídio, como também que grande parte do lucro garantido pela exportação fosse revertido para políticas sociais. “A diferença entre ser um país rico ou miserável não está na sua capacidade produtiva, e sim na sua forma de distribuição de renda”, completa a economista Melisa Maytin, professora de economia política da Universidade Bolivariana de Venezuela.

Hoje, a Venezuela é o quinto maior exportador de petróleo do mundo. É também o dono da maior reserva da substância: o seu subsolo guarda 295,5 bilhões de barris de “ouro negro”. Possuir quantidades enormes de uma das riquezas minerais mais desejadas em todo o mundo deixa o país em uma posição bastante confortável do ponto de vista econômico. Mas a dádiva, já se sabe, é também maldição: devido à alta rentabilidade da exploração petrolífera, o país sempre encontrou dificuldades de desenvolver em grande escala atividades desvinculadas ao setor de extração.

A Venezuela produzia cacau e café em média escala e era uma das colônias menos interessantes para a Coroa Espanhola. Não possuía as reservas de prata da Bolívia, nem os solos férteis de Cuba, onde estavam grandes plantações de açúcar. Só em 1917 o petróleo começou a ser explorado. O êxito foi imediato. “Desde que jorrou o primeiro poço, a população se multiplicou por três e o orçamento nacional por 100”, escreveu Eduardo Galeano no livro As veias abertas da América Latina, publicado em 1970. Políticas como a abertura da malha rodoviária mais completa do continente sul-americano coexistiam com a formação de grandes favelas. A maior delas, Petare, na região metropolitana de Caracas, tem pouco mais de 600 mil habitantes.

Petróleo para quem?

A rentabilidade do petróleo era tão alta que os investidores e produtores nacionais pouco se interessaram em desenvolver outros setores, o que obrigou a Venezuela a importar um sem número de produtos. De automóveis a ovos, de geladeiras a leite condensado. Na década de 1970, por exemplo, era o país que mais importava uísque escocês per capita. O que se deu foi a enorme entrada de dinheiro que não era utilizada para o crescimento do mercado interno, mas para criar uma situação na qual milhões estavam excluídos enquanto o resto consumia bens importados.

Foi nesse contexto que Hugo Chávez venceu as eleições presidenciais de 1999, com a promessa de fazer amplos investimentos nos setores produtivos e sociais. Uma das primeiras medidas foi estreitar a relação com a Organização de Países Exportadores de Petróleo (Opep). “Quando Chávez começou seu mandato, o preço do barril era US$ 4,60. A partir de uma política de controle de produção, o preço foi subindo e chegou a US$ 130 em 2008, um recorde”, afirma Nildo Ouriques. Essa ação trouxe grande descontentamento por parte de alguns países, principalmente os Estados Unidos, maior comprador de petróleo da Venezuela até então.

Junto à politica externa, Chávez tomou uma série de medidas internas, como o aumento da cobrança de royalties para investimento em políticas sociais e a limitação da produção de petróleo, além da demissão de vários gerentes da PDVSA, a estatal do setor, como uma estratégia de reestruturação. Sob denúncia de que o presidente vinha tomando ações de caráter autoritário, a Confederação de Trabalhadores da Venezuela – principal central sindical do país – anunciou uma greve de 48 horas. Executivos da estatal petroleira e membros da Federação de Câmaras e Associações de Comércio e Produção da Venezuela (Fedecamaras) aderiram.

Instabilidade interna

No dia 11 de abril de 2002 ocorreram os primeiros atos. Nos dois dias seguintes, o país iria viver uma tentativa de golpe de Estado. O Alto Mando Militar se posicionou contra o governo, mantendo o presidente preso e exigindo sua renúncia. A mídia também teve um papel importante nesse processo ao convocar manifestações e manipular imagens das marchas com o objetivo de culpar o governo pela violência das ruas.

Um movimento de contragolpe, iniciado por setores do Exército, começou a tomar forma, e milhões de venezuelanos saíram às ruas pedindo a volta do presidente. Enquanto isso, os canais de televisão privado silenciavam os protestos com programações paralelas.

Chavéz foi resgatado no dia 13 de abril e chegou ao Palácio de Miraflores de helicóptero, ovacionado por milhões de pessoas. Diversos veículos de comunicação e órgãos internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), confirmaram que aqueles três dias se constituíram em uma tentativa de golpe.

Os trabalhadores petroleiros seguiam insatisfeitos. Houve manifestações esporádicas ao longo do ano, até que a Fedecamaras, principal entidade empresarial, convocou o que seria a maior greve da história da Venezuela. O “paro petrolero”, como ficou conhecido, foi uma paralisação de dois meses que provocou uma crise de abastecimento de petróleo e outros produtos. Seu objetivo era pressionar o presidente a que renunciasse. Não funcionou, mais uma vez

Após a estabilização da questão política e da produção de petróleo, o presidente avançou na criação de políticas sociais e econômicas. Era o começo do discurso sobre o socialismo do século 21. As propostas de Chávez com relação à soberania do país se tornaram mais rígidas. O então presidente governou até sua morte, em fevereiro de 2013, sem grandes manifestações ou instabilidades.

Busca por uma economia socialista

Em um passeio pelas ruas de Mérida, a noroeste do país, um cartaz colado à parede de uma padaria chama a atenção: “Este estabelecimento foi multado por aumentar o valor dos seus produtos sem justificativa”. Eram os primeiros dias da Lei Orgânica de Preços Justos, validada por Nicolás Maduro em 24 de janeiro. A lei permite à empresa um lucro máximo de 30% e impede que o consumidor pague um valor muito acima do custo real de tal produto.

A primeira regra para tentar entender a economia venezuelana é perceber que desde a entrada de Hugo Chávez no poder e, principalmente, após a tentativa de golpe, o governo atua sobre outra lógica de pensamento. Vem-se tentando construir um país socialista, onde todos tenham suas necessidades básicas asseguradas e o controle dos meios de produção seja coletivo, ainda que isso signifique a perda de privilégios por alguns setores.

Quem mais perde, obviamente, é quem pretende lucrar. Os grandes produtores e empresários têm uma rixa antiga com o governo chavista, que desde 2002 realiza uma série de expropriações. Segundo a Confederação Venezuelana de Indústrias, foram expropriadas 1.168 empresas em uma década, em sua maioria dos setores de construção, agroindústria, petróleo, comércios e alimentos. Todas elas foram avaliadas e receberam suas indenizações, nem sempre em dia.

A ideia é tornar o país cada vez menos dependente do capital internacional. Ao obter o controle dessas empresas, o governo assegura a comercialização de produtos e serviços a um valor que não ultrapassa exageradamente o poder de compra da população e garante que o lucro obtido seja reinvestido em produção ou em projetos sociais. Além disso, com o tempo, o país se tornaria menos dependente de importações.

As compras de produtos produzidos no exterior, porém, continuam altas. Segundo o Instituto Nacional de Estatística, o total de importações realizadas pelos setores públicos e privado da Venezuela soma quase 45 milhões de dólares. Órgãos do governo afirmam que esse valor não ultrapassa 30% de todo o consumo, mas diversos analistas não confiam nos dados com o argumento de que o país ainda não é capaz de produzir bens e serviços suficientes para sanar a demanda do mercado consumidor.

Um exemplo é o que ocorreu após a expropriação das empresas de cimento. Os opositores dizem que desde então a fabricação diminuiu consideravelmente, resultando na escassez do produto. O governo afirma que, devido ao programa Missão Vivenda, que promete acabar com o déficit habitacional venezuelano até 2019, o consumo de cimento pela construção civil aumentou mais do que a produção.

Incentivando a indústria nacional

Com parte do dinheiro oriundo da exportação do petróleo, o governo vem criando programas agrícolas e industriais. Uma das propostas é a instalação de uma fábrica de montagem de motores de carro da empresa chinesa Chery Automobile ainda este ano. Desde 2011, a empresa já vendeu mais de três mil veículos a baixo custo para a Venezuela. O mesmo ocorre com alguns setores de telecomunicações, como o de produção de celulares: o país conta com duas unidades da Orinoquia, também com tecnologia chinesa.

Outro projeto importante é o Canaíma, que tem como objetivo desenvolver o setor tecnológico. Ele foi inspirado no projeto português Magalhães, que distribui laptops de baixo custo produzidos no próprio país para crianças com idade escolar. Os primeiros computadores que chegaram à Venezuela foram importados de Portugal, enquanto se desenvolvia um plano de transferência de tecnologia que fez com que o país abrisse sua própria fábrica. Até hoje, foram entregues 3,5 milhões de canaímas em todo o país.

No setor agrário, a grande aposta do governo é pelas comunas, uma maneira de organização popular da produção. Nicolás Maduro deu grandes incentivos, intensificando um processo de reforma agrária e fornecendo crédito e maquinário para os pequenos produtores para que, assim, consigam o que o governo chama de soberania alimentar, ou seja, não dependam da importação de produtos de alimentação básica. Atualmente existem 130 comunas já estabelecidas e 353 em construção.

Mas ainda falta muito para que o país alcance maior independência produtiva. “O governo deveria exigir dos empresários uma análise de performance antes de conceder empréstimos”, afirma Nildo Ouriques. Segundo o economista, essa também é uma maneira de garantir que o empréstimo traga retorno à produção nacional.

A questão é que o governo não está preparado para assumir a produção de tantos setores. Ainda hoje é impossível competir com grandes corporações, como a Empresas Polar, maior produtora de alimentos processados do país. Isso sem contar o crescimento do consumo de 10% ao ano, um ritmo superior à capacidade de produção do país. Nesse cenário, a escassez de alimentos é um fato.

Alimento como arma

Nas prateleiras de vários mercados do centro de Caracas, é difícil encontrar Harina P.A.N, uma marca de farinha de milho pré-cozida que faz parte da dieta básica dos venezuelanos. Também não é fácil encontrar frango. Muito menos papel higiênico. O governo afirma que o desabastecimento forma parte de uma estratégia de guerra silenciosa na qual diversos fatores políticos e econômicos estão sendo usados para acabar com a credibilidade do processo socialista venezuelano.

“A guerra econômica na Venezuela foi declarada desde o momento em que Chávez falece. Ela se expressa nos níveis de escassez, principalmente pelo fato de que as indústrias de alimentos, como a Polar, produzem a mesma quantidade para uma população que cresce. Além disso, boa parte se exporta, outra parte é contrabandeada até a Colômbia e algumas ilhas – cerca de 35% da produção nacional. O que sobra é distribuído de maneira concentrada: levo toda a produção a lugares específicos e não distribuo. Por isso, os consumidores vão pela cidade perseguindo os lugares onde se vendem os produtos”, explica a economista Victoria Pacheco, membro da Sociedade de Economia Política Radical.

Os oposicionistas ao governo, por sua vez, dizem que a escassez de alimentos é resultado de uma política econômica que afugentou as empresas produtoras de alimentos. A produção nacional de bens básicos não supre as necessidades da população, que depende das importações. Mas, se a compra de dólares é restrita, há menos importação, ainda que o governo libere somas exorbitantes com esse objetivo.

Uma coisa é certa: não há fome. A Venezuela melhorou o padrão alimentar e erradicou a subnutrição crônica, segundo dados da Unesco. Uma das políticas mais importantes para isso foi a criação de uma rede de mercados estatais com alimentos a preços subsidiados, chamada Mercal, que está em aldeias indígenas, cidades do interior, praias, grandes centros econômicos, favelas, na beira das estradas. Com 18 mil pontos em todo o país, essa rede conseguiu descentralizar a oferta e oferecer uma série de itens considerados essenciais para atender à demanda básica da população.

Uma moeda, dois valores

O câmbio também é um dos grandes problemas financeiros da Venezuela. Em um mesmo local um prato de comida pode custar 13,50 ou 1 dólar: tudo depende de que maneira o cliente conseguiu seu dinheiro. No câmbio oficial, 1 dólar equivale a 6,30 bolívares. No mercado paralelo, 1 dólar podia ser trocado por um valor entre 80 e 85 bolívares.

Para entender o problema é preciso voltar ao ano de 2003, quando o então presidente Hugo Chávez criou uma politica de contenção e fixou o câmbio. Foi a solução encontrada naquele momento para impedir a saída de dólares do país, que no ano anterior fez as reservas nacionais diminuírem em 20%, segundo dados da consultora Ecoanalítica. A queda foi influenciada pelo momento de instabilidade vivido em 2002: com o “paro petrolero” e as políticas do governo, que se tornavam cada dia mais rígidas, muitos resolveram enviar dólares para o exterior.

A medida funcionou muito bem no primeiro ano, mas não impediu que a fuga de capitais continuasse acontecendo nos anos seguintes. Só na última década saíram cerca de US$ 150 bilhões dos cofres nacionais. Atualmente, a reserva internacional do Banco Central da Venezuela sustenta a cifra de US$ 21 bilhões. “Essa é a verdadeira razão da inflação”, aposta o economista Nildo Ouriques. A inflação na Venezuela chegou a 56% no ano passado, a mais alta da América Latina. Para alguns especialistas, a solução seria racionalizar os gastos públicos e estimular os investimentos privados a fim de incrementar a produção interna e fazer com que o país seja menos dependente de importações.

Mas, em um país socialista, é quase impossível que essas propostas sejam aceitas. Inclusive porque não são um consenso. “A inflação não tem nada a ver com o gasto do governo e sim com o fato de que todos os anos saem mais de 20 bilhões de dólares dos cofres nacionais. É preciso impedir essa fuga. Se o Maduro não estatizar o sistema bancário não tem como acabar com a inflação”, opina Nildo.

Outro efeito negativo foi a ampliação do mercado paralelo. Atualmente, existem três tipos de cambio. O dólar oficial, fixado a 6,30 bolívares, é utilizado para a maior parte das importações. O dólar Sicad, fixado a 11,80 bolívares, está dirigido a importações não prioritárias e atividades turísticas. O dólar Sicad 2, criado ainda este ano pelo presidente Maduro, é flutuante e possibilita que pessoas e empresas privadas possam comprar e vender dólares, quebrando com a exclusividade do governo.

Há ainda um quarto valor de câmbio, o paralelo, que se converteu em uma das atividades atuais mais lucrativas: uma pessoa que compra dólar pelo governo gasta 6,30 bolívares e ao chegar no mercado paralelo vende a mesma moeda por mais de 80 bolívares. O resultado é que, dessa maneira, os grandes detentores de capital lucram duas vezes.

Enquanto as incertezas sobre as políticas econômicas continuam, as manifestações ocupam as ruas do país. Engana-se quem acha que os protestos estão dividindo as opiniões na Venezuela: ali, as opiniões sempre estiveram polarizadas e apoiadores e oposicionistas sempre se manifestaram. Enquanto a cobertura midiática internacional mostra os protestos e deixa todo mundo sem entender porque o governo de Nicolás Maduro persiste, as camadas mais populares do país se unem para defender o socialismo do século 21.




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