Entrevista LD: “O Brasil é referência no combate ao trabalho escravo porque estamos criando instrumentos para erradicar o problema” – José Guerra

Na Entrevista LD desta semana, o gestor governamental da secretaria de Direitos Humanos da presidência traça um panorama da situação brasileira em comparação a outros países do mundo

Por Portal Linha Direta
Sexta-feira, 4 de abril de 2014



Militante desde a juventude, José Guerra é gestor governamental na Secretaria de Direitos Humanos da presidência da república. Uma das responsabilidades da pasta é criar e fiscalizar políticas públicas que busquem a erradicação do trabalho escravo. Durante os sete anos em que está na secretaria, José Guerra teve contato com os principais resultados e dificuldades da Comissão Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo – a Conatrae. Ouça abaixo a entrevista completa.

Linha Direta: Zé Guerra, conta um pouco mais sobre você.

Zé Guerra: Sou baiano, nascido em Salvador. Comecei minha militância no movimento estudantil junto aos secundaristas. Durante a faculdade, iniciei uma militância mais orgânica tanto no movimento estudantil quanto no Partido dos Trabalhadores. Fui diretor do Centro Acadêmico durante bastante tempo na Universidade Federal da Bahia e também do DCE. Após o período acadêmico, para manter a minha militância, resolvi prestar concurso público. Em 2006, passei no concurso como analista do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Já em 2007, assumi a função de gestor governamental na secretaria de Direitos Humanos da Presidência.

LD: Você é formado em direito?

Zé Guerra: Sim, sou bacharel em direito, mas não fiz nenhum exame de advocacia, apenas concurso público. Acredito que o meu trabalho na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência é uma continuação da minha militância.

LD: Como é seu trabalho na Conatrae e qual a atuação da comissão?

Zé Guerra: Em 2007, logo que passei no concurso, meu colega Vinicius, que também é gestor governamental, me convidou para trabalhar com ele. Ele iria assumir o cargo de Chefe de Gabinete do ministro Vannuchi. Eu já o conhecia por conta do movimento estudantil, pois ele foi diretor do Centro Acadêmico 12 de Agosto, da USP. Dentro das atribuições do gabinete, tinha a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (a Conatrae) e o ministro precisava de um assessor para tocar essa pauta. Foi de forma aleatória que comecei a trabalhar com o trabalho escravo. Inciei acompanhando o ministro que é o presidente da Conatrae. Na restruturação da secretaria foi criada a função de gestor governamental e fui convidado a assumir a tarefa e até agora o único.


LD: Qual a definição de trabalho escravo?

Zé Guerra: O trabalho escravo é um trabalho forçado e involuntário. A pessoa é obrigada por algum motivo ou ameaça a se manter no trabalho. Normalmente essas pessoas tem origem em locais distantes.

Um dos “tipos” é a servidão por dívida. Nestes casos, o trabalhador é aliciado no exterior, ou num lugar distante de onde vai atuar, e já chega ao local de trabalho (na fazenda ou na construção) devendo dinheiro, então ele trabalha para pagar essa dívida. Qualquer instrumento de uso ele é obrigado a comprar, aumentando a sua dívida.

Além disso, existem os trabalhos com condições degradantes e com jornada exaustiva. As condições degradantes são as que você percebe que nenhum ser humano deveria trabalhar em uma condição dessas. Um exemplo são os trabalhadores da colheita do mate do Paraná e em Santa Catarina. Eles trabalham há menos de dois graus, com ventos fortíssimos e sem roupa decente, além disso, ficam acampados durante dias em barracão de lona. Não é minimamente aceitável que um ser humano trabalhe numa condição desta. Existem situações em fazenda, onde você vê trabalhadores dividindo estábulos com os animais, tomando banho no mesmo poço em que os animais se alimentam. Estes são exemplos de condições degradantes de trabalho.

A jornada exaustiva não tem nada a ver com a duração da jornada, já que são permitidas extensões e plantões. Inclusive situações de trabalho especial, como os que trabalham 12x36 horas. A jornada exaustiva é aquela que se você continuar por muito tempo, não conseguirá sobreviver. Existem situações em São Paulo, como na colheita da cana de açúcar, em que trabalhadores morreram por conta do ritmo pesado.

Esse é o conceito de trabalho escravo no Brasil – que está à frente do internacional. Nosso País é referência mundial nesta problemática, tanto pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), quanto pela ONU.

LD: Em todas essas situações não há uma contrapartida financeira? Ou pode haver?

Zé Guerra: Pode haver compensação financeira. Você não precisa necessariamente estar trabalhando de graça. Você inclusive pode estar trabalhando regularmente, com as contas em dia. Só que a situação de trabalho é tão ruim e você tem tão pouca proteção do seu trabalho, que você está envolvido com um trabalho escravo por causa da situação degradante. Quando se fala nisso, não é irregularidade pequena. A situação é muito grave. É o limite da exploração do trabalho, é tão acima do limite que acaba virando crime.

LD: Qual é o panorama do trabalho escravo no Brasil?

Zé Guerra: Podemos dizer, sem nenhuma dúvida, de que o trabalho escravo em relação à força de trabalho e ao mercado no Brasil é uma situação minoritária. Desde 1995, quando o nosso país assumiu a existência do trabalho escravo e começou a combatê-lo pelos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego, pelo Ministério Público, pelas Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal, já foram libertados mais de 50 mil trabalhadores. Apesar de ser um número alto, precisamos levar em conta que o Brasil tem 100 milhões de trabalhadores. Para erradicar o trabalho escravo, queremos punições cada vez mais rigorosas, para que seja possível diferenciar o bom empregador, aquele que paga com todos os direitos, do mau empregador, que se utiliza do trabalho escravo.

Nós temos a PEC do Trabalho Escravo que hoje está no Congresso e endurece as punições criminais e trabalhistas. Uma das propostas é a tomada das terras ou da propriedade urbana onde for encontrada a existência de trabalho escravo. Com isso você consegue demarcar bem uma linha. O bom empregador será protegido pelo TEM e o mau empregador irá ser punido com o rigor da lei.

LD: Como o mundo enxerga o trabalho escravo? Em que posição o Brasil se encontra?

Zé Guerra: Existe uma diferença muito grande entre o Brasil e o mundo. Isto porque o resto do mundo trabalha apenas com o trabalho forçado. Aqui, nós temos um conceito mais amplo, que protege mais o trabalhador. As estimativas da Organização Internacional de Trabalho (OIT) afirmam que existem cerca de 19 milhões de trabalhadores escravos no mundo. Principalmente por trabalho forçado e servidão por dívida.

Neste ano, a OIT irá fazer uma convenção internacional com a temática do trabalho forçado. A ideia é que a gente consiga atualizar esse conceito, tomando como base o conceito brasileiro, assim poderemos avançar mais na erradicação do trabalho escravo no mundo. Precisamos ampliar a ideia de que trabalho forçado não seja apenas a violência pura e restrição de liberdade, mas também por melhores condições de trabalho, não atentando à dignidade do trabalhador. Existem países em que o governo se utiliza do trabalho escravo, como por exemplo, na Ásia. Nosso país é referência, não porque estamos erradicando esse problema, mas porque nós assumimos a situação e estamos criando instrumentos para combater.

LD: Quais setores se utilizam do trabalho escravo?

Zé Guerra: Antes disso, acho que seria interessante colocar, o que é o trabalhador “escravizável”. É o trabalhador que não teve acesso à educação, qualificação profissional e está numa situação tão miserável que se vê “obrigado” a aceitar qualquer oferta de trabalho. Ele acaba recebendo propostas de falsos bons trabalhos e não tem oportunidade de escolher. Sem qualificação, ele não consegue se inserir no mercado.

O trabalhador que utiliza a força bruta não precisa ser qualificado. Assim, não precisando de qualificação, ele entra apenas em trabalhos que exijam força física. Os setores que mais encontramos situações de exploração no trabalho são a derrubada de mata para fazer parque, carvoarias (que são locais que você precisa apenas ter a força bruta para colocar pra queimar), produção de cerca, colheita manual, retirada de madeira para a construção civil.

Além disso, há seis anos, temos outras situações de vulnerabilidade. Estrangeiros que vem ao Brasil e não sabem seus direitos. Acham que por estarem em situação irregular não podem ter acesso aos bens públicos, como educação, saúde e direitos trabalhistas. Nós temos visto muito isso em São Paulo na indústria têxtil.

LD: Como faz para identificar o trabalho escravo? Qual a dificuldade de chegar até esses lugares?

Zé Guerra: Por ser uma situação de crime, com irregularidades graves, nosso trabalho é impulsionado pelas denúncias públicas. Precisamos conscientizar a sociedade para que quando perceber uma situação de trabalho escravo denuncie. Atualmente, cerca de 60% das denúncias que chegam ao Ministério de Trabalho e Emprego são fiscalizadas a tempo. Nos 40% restantes, a denúncia não é feita ou está incompleta, não tem informação do local ou da situação. É preciso empenho da população para que o número de denúncias aumente. A estrutura do Estado está pronta para agir e libertar trabalhadores em situação de exploração.

LD: Depois de terem feito a denúncia, como é feito esse processo?

Zé Guerra: Essa denúncia é tratada pelo Ministério do Trabalho e Emprego e pelo Ministério Público do Trabalho. Eles fazem um estudo, visitas exploratórias em sigilo para saber o que realmente está acontecendo. A partir daí, um grupo móvel composto por policiais, auditores e procuradores age para resgatar os trabalhadores e dar os direitos a eles. Os trabalhadores que optarem por voltar para sua terra de origem recebem a passagem. Além disso, o empregador entra na lista suja e é processado criminalmente por utilizar mão de obra escrava. Por isso é muito importante aumentarmos o número e qualificar essa denúncia.

LD: Como fazer a denúncia?

Zé Guerra: A pessoa pode procurar qualquer superintendência ou gerência do Trabalho e Emprego. Caso não tenha nenhuma próxima, deve ligar para o Disque 100 (Disque Direitos Humanos). Os atendentes estão preparados para trabalhar em cima da denúncia e entregar para o TEM de forma qualificada. A ligação é gratuita e funciona todos os dias, 24 horas e de qualquer lugar (orelhão, telefone fixo ou celular). A partir daí estudaremos a situação e realizaremos o resgate dos envolvidos com o trabalho escravo.

LD: É preciso descrever a situação, dar o endereço?

Zé Guerra: É importante descrever bem o local e a situação. Se possível contar o número de pessoas que estão nessa situação e também reunir o máximo de informações possível de forma ágil, para que possamos agir.

LD: Quais são os projetos futuros da CONATRAE?

Zé Guerra: Hoje nós temos a PEC do Trabalho Escravo. A proposta prevê o confisco de terra ou propriedades em que for encontrado trabalho escravo. Assim, aumentaremos a punição e servirá como uma medida educativa. O empregador irá pensar duas vezes para forçar a situação do trabalhador. O que me traz aqui em São Paulo é que estamos numa política muito grande para criar comissões estaduais e municipais para fortalecer as políticas públicas pela erradicação do trabalho escravo. Esse ano já teve a primeira reunião do município de São Paulo.

O prefeito Haddad, enquanto candidato, assumiu um compromisso de criar políticas públicas para erradicar o problema do trabalho escravo na cidade de São Paulo. Ele vem cumprindo com a promessa de campanha e deu orientação ao secretário de Direitos Humanos, Rogério Sotili, que está tocando para frente essa temática. Com mais ações como essa, vamos conseguir trabalhar pela erradicação do trabalho escravo em todas as esferas do governo




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