No presídio em São Paulo, “cada visita é um estupro"

Audiência Pública em São Paulo debateu a humilhação e a violação de direitos pela qual mulheres, amigas e parentes de presidiários passam durante as revistas em dia de visita

Por Spresso SP
Quarta-feira, 2 de abril de 2014


“Quando o companheiro da gente é preso, somos presas junto e submetidas às mesmas humilhações. Funciona do mesmo jeito. Nos tratam que nem animais”, disse, durante a audiência pública, uma esposa de presidiário que preferiu não se identificar.

O evento, promovido pela Ouvidoria Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e pelo Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, aconteceu no último sábado (29), com o intuito de expor, debater e mobilizar a sociedade em relação à revista vexatória, aquela que humilha e viola os direitos dos visitantes nas penitenciárias. Participaram da audiência defensores públicos, entidades e movimentos sociais ligados aos direitos humanos e a questões carcerárias, bem como mulheres que têm companheiros, amigos ou parentes presos e que já sentiram na pele o constrangimento de uma revista desse tipo.

Revista vexatória é o termo utilizado para o tipo de revista em que a pessoa visitante é constrangida a tirar a roupa, e/ou expor as partes íntimas, que em muitos casos é também inspecionada. A humilhação não se limita só à inspeção, mas ocorre muitas vezes também através das coisas que são ditas por agentes penitenciários às pessoas que estão ali para fazer a visita.

Apesar da Constituição Federal garantir o direito à intimidade, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação, a prática da revista vexatória é extremamente comum e não é, ainda, tipificada como crime na maior parte do país. Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Espirito Santo, Minas Gerais, Goiás e Paraíba são os únicos de toda a federação que proíbem a prática.

Na audiência pública, foram apresentados dados a fim de se discutir o tema e também mobilizar a sociedade civil em prol da aprovação do Projeto de Lei 480/2013, de autoria da Senadora Ana Rita (PT/ES), que criminaliza a prática da revista vexatória.

De acordo com a Rede de Justiça Criminal, formada por entidades de direitos humanos, somente em 2012, aproximadamente 3,5 milhões de revistas vexatórias foram realizadas no estado de São Paulo. O que chama mais atenção nessa informação, além do alto número de ocorrências desse procedimento, é que constatou-se que de todas essas revistas, em apenas 0,02% dos casos foram apreendidas drogas ou celulares. Isso mostra o quão desnecessárias são as revistas vexatórias, tendo em vista que a maior parte das drogas e dos celulares que entram nos presídios não é por meio delas. ”Eles sabem que o povo não entra com ilícito, eles sabem muito bem onde entra. Essa tortura toda é arbitrária”, disse outra mulher que faz visitas ao marido na penitenciária.

A revista manual, que acaba culminando na revista vexatória, só pode ser feita em último caso, quando há a chamada “fundada suspeita” por parte dos agentes penitenciários em relação ao visitante. O procedimento padrão é feito por meio de inspeção eletrônica ou mecânica, sendo a manual de última instância. Acontece que o conceito de “fundada suspeita” e muito genérico e, por isso, a prática é tão recorrente.

Priscila, mulher de um homem que está preso no Complexo Penitenciário de Presidente Venceslau, a mais de 600 quilômetros de distância de São Paulo, contou que passa por humilhações constantemente. Segundo ela, para visitar o marido no domingo, sua jornada começa já na terça-feira, quando vai ao supermercado comprar comida e produtos de higiene pessoal ao companheiro. “Lá a comida é péssima e eles não dão nada, temos que comprar tudo pra muitas vezes chegar lá, ser humilhada e ainda não conseguir entrar ou entregar a comida que fez”. A jovem descreveu em detalhes o seu sacrifício semanal. As agentes penitenciárias a obrigam quase sempre a ficar sem roupa, independente se está menstruada ou não. “Me mandam abrir (a cavidade vaginal), dizem para fazer força, para tossir”, denunciou Priscila.

Além da exposição, Priscila, por muitas vezes, teve que ver o seu trabalho da semana inteira sendo jogado fora e ainda ouvir desaforos por parte dos agentes. “Quando eles se apegam a alguma coisa, nem a comida que você passou a semana inteira preparando entra”. “Lá vai marmita de ladrão embora”, é o que dizem os agentes, segundo a jovem, quando não querem deixar a comida entrar.

Dona Cremilda, outra mulher que tem um companheiro preso, usou do bom humor para quebrar o gelo da sala, que estava baqueada com o nível de humilhação relatado nos depoimentos das mulheres. “O que eles mandam a gente fazer ali, só as bailarinas de funk fazem. E na velocidade 100 ainda!”, disse a senhora, se referindo aos movimentos, como agachamentos, que as mulheres são obrigadas a fazer, muitas vezes nuas e ainda com um espelho.

Nem mesmo idosas estão imunes a esse tipo de revista. Entre os depoimentos, uma mulher disse que certa vez presenciou uma senhora de 70 anos de idade sendo obrigada a ficar nua. Quando a idosa tirou a roupa, ainda foi humilhada. “Pode parar, não sou obrigada a sentir esse cheiro”, teria dito uma agente penitenciária, na ocasião, quando a mulher começou a se despir.

A Defensoria Pública recomenda, no entanto, que as pessoas que passarem por situação de revista vexatória não briguem ou reclamem diretamente com os agentes penitenciários. Isso por que, segundo as próprias famílias que têm parentes presos, qualquer atitude que tenham ali, as consequências serão refletidas na pessoa que está na prisão. “Se a gente reclama, pegam o nosso filho lá dentro”, disse outra senhora que já passou por revista vexatória.

O órgão orientou os amigos e familiares de presos que guardem o nome e o contato de pessoas que tenham visto ou participado da revista humilhante para que possam servir como testemunhas. Com essas informações, a Defensoria Pública ou um advogado podem fazer o pedido de responsabilização e indenização contra o Estado.

“Presídio é uma instituição de violação de direitos. Não vai acabar a violação de direitos enquanto houver presídios. E essa violação é interessante ao Estado por que manter presídios é algo muito lucrativo”, disse o Padre Valdir, da Pastoral Carcerária.




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