Documentário desmonta tese oficial de suicídio de Iara Iavelberg
Para Mariana Pamplona, sobrinha da militante, evidências contundentes, histórico de farsas do regime militar e a paixão de Iara pela vida e luta desautorizam versão oficial
Quinta-feira, 27 de março de 2014
São Paulo – “Meu nome é Mariana Pamplona. Não tenho o sobrenome Iavelberg porque meus pais temiam que eu viesse a sofrer algum tipo de represália. Minha mãe soube da morte de sua irmã quando tinha 20 anos. Estava grávida de três meses, ou seja, eu nasci pouco tempo depois que Iara morreu, e isso, de alguma forma, deve ter me marcado.”
Assim a roteirista e produtora do documentário Em Busca de Iara, abre o filme do qual acabou se tornando também fio condutor. Afinal, o objeto documentado é a procura da família por evidências que derrubem a versão de suicídio da militante do MR-8 Iara Iavelberg, morta em agosto de 1971 numa operação policial em Salvador. A operação denominada Pajuçara envolveu mais de 200 homens das três forças armadas, policiais federais, o Dops e a PM da Bahia e só foi concluída com a captura e morte do ex-capitão Carlos Lamarca, no interior do estado, uma mês depois de Iara morrer.
O filme dirigido por Flavio Frederico ganhou menção honrosa no Festival é Tudo Verdade do ano passado e entra em cartaz em circuito comercial nesta quinta-feira (27). Flavio tinha na bagagem, entre vários filmes de ficção e documentários, Caparaó, também roteirizado por Mariana, sua mulher, vencedor do É Tudo Verdade de 2006, em que retrata a primeira tentativa de resistência militar armada ao golpe de 1964, na divisa entre Minas Gerais e Espírito Santo.
Mariana e Flavio começaram a desconfiar que a história de Iara poderia se tornar filme em 2003, quando 22 anos depois de sua morte, a família conseguiu, na Justiça, obrigar o Cemitério Israelita do Butantã a autorizar a exumação dos restos mortais da ala desonrosa dos suicidas para uma nova autópsia. E passaram a transformar o desejo em projeto a partir de 2006, quando filmaram o novo sepultamento junto aos familiares. Isso, depois de um novo e minucioso laudo assinado pelo legista Daniel Munhoz, que considerou improvável que Iara pudesse ter feito o disparo que a matou.
O casal conduz um árduo trabalho de coleta de documentos, imagens e depoimentos. E após uma trabalhosa montagem do quebra-cabeças que consumiu quase oito anos.
O filme apresenta ao espectador um perfil delicado e vibrante de Iara. Sua energia, inteligência, beleza e convicção no triunfo da resistência armada são assinalados em depoimentos de familiares, namorados, companheiros e auxiliares. Retrata o ambiente político e cultural da época, a imersão na luta armada e a fuga para a Bahia – onde se encontraria com o companheiro Lamarca. Reúne testemunhos inéditos que explicam as razões que levaram à queda do “aparelho” na praia da Pituba, em Salvador, e desmontam a tese de suicídio até hoje sustentada oficialmente.
Para Mariana, as evidências tornam inconcebível que muitos autores do tema tenham dado a versão do suicídio como verdade. “Mesmo porquê, de qualquer versão dada pela ditadura isentando-se da autoria de crimes é preciso desconfiar.” Estão aí para dar-lhe razão Rubens Paiva, Herzog, Stuart Angel, Virgílio Gomes da Silva e tantos outros casos que vêm sendo desvendados desde a produção do documento Brasil Nunca Mais, pela Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, nos anos 1980, até os recentes testemunhos recolhido pelas comissões da verdade.
Mariana era o codinome da ativista na clandestinidade. Aos 15 anos, a sobrinha leu, na íntegra, os diários de Carlos Lamarca, em que o ex-capitão revelava a influência intelectual de Iara sobre suas decisões e uma paixão extrema e incondicional. Os textos publicados num jornal foram mostrados pela mãe. A arte-educadora Rosa não era ativista, como os irmãos Samuel, Raul e Iara. Apenas ajudava nos dias de clandestinidade em encontros para levar comida e roupas. Nos anos 1970, mantinha uma instituição privada de ensino, Criarte, com proposta pedagógica humanista, que viria a se chamar Escola da Vila.
A produção tentou, por meses, tomar depoimento da presidenta Dilma Rousseff . Dilma era próxima do casal, confidente de Carlos Lamarca e já mencionou o nome de Iara em discursos, lembrando terem participado da “mesma luta”. Mas não conseguiu. “Seria um registro histórico, mas não era imprescindível”, resigna-se Mariana.
Flavio Frederico não tem expectativas quanto à duração da temporada do documentário no circuito comercial. “Mas o filme não se esgota em seu período de exibição. Estará nos arquivos, nas bibliotecas e escolas. É um registro histórico em busca das verdades sobre um período que não pode ser esquecido nem repetido. Porque o regime conseguiu ceifar durante muito tempo das gerações seguintes o direito à informação sobre o que de fato aconteceu em seu país.”