Propaganda de Alckmin diz que trem lotado é bom pra xavecar a mulherada
Publicidade oficial aparece na Rádio Transamérica em momento em que sociedade repudia `encoxadas`. Metrô admite conteúdo `inapropriado` e culpa emissora
Quarta-feira, 26 de março de 2014
São Paulo – O governo do estado de São Paulo, responsável pelas redes de trens e metrô na capital e na região metropolitana, veiculou durante alguns dias entre fevereiro e março uma inserção publicitária na Rádio Transamérica em que afirma literalmente que vagões lotados, comuns durante o horário de pico no sistema metroferroviário paulista, são “bons para xavecar a mulherada”.
“Nos horários de pico, é normal trem e metrô ficar lotado. É assim também nas grandes metrópoles espalhadas pelo mundo”, diz o personagem Gavião, que se expressa com um falar característico da periferia paulistana. Além de promover o conformismo dos passageiros com a superlotação, o narrador ainda comemora o aperto diário nos vagões. “Pra falar a verdade, até gosto do trem lotado. É bom pra xavecar a mulherada, né, mano? Foi assim que eu conheci a Giscreusa.”
Apesar de não se referir a cifras financeiras, a inserção publicitária tinha como objetivo anunciar investimentos do governo do estado no sistema metroferroviário paulista. “Se você juntar hoje Metrô e CPTM, transportam todo dia 7,5 milhões de passageiros. É gente pra caramba, hein?”, contabiliza, e anuncia a construção do monotrilho. “E olha que ainda tem sete obras em andamento, que vão aumentar e deixar mais modernos os trens e as estações.”
Encoxadas
A notícia de que o governo do estado de São Paulo veiculou spot dizendo que trens lotados são bons para “xavecar a mulherada” aparece apenas algumas semanas depois que ganharam corpo na imprensa denúncias de assédio sexual contra mulheres no Metrô e na CPTM. De acordo com a Delegacia do Metropolitano, ao menos 23 pessoas foram vítimas de abusos nos trens e metrôs da Grande São Paulo em 2014. As práticas costumam ocorrer justamente em vagões lotados.
Alguns usuários do sistema também desenvolveram o hábito de filmar ou fotografar pernas e bustos de passageiras, produzindo imagens que posteriormente são colocadas nas redes sociais. Uma página no Facebook – “Encoxadores e encoxadoras”, retirada do ar há duas semanas – incentivava o assédio sexual no transporte público da cidade. Ontem (24) ao menos outras duas páginas, intituladas “Encoxada”, foram criadas na rede social, com fotos de mulheres, também propagandeando a prática. Esse tipo de abuso é também conhecido como “frotteurismo”, que vem do francês “frotteur”, que pode ser traduzido como “fricção”.
No dia 17 deste mês, um universitário foi preso por estupro depois de molestar uma passageira que viajava em um trem da Linha 7-Rubi da CPTM. O acusado segurou a vítima pelo braço e tentou arrancar suas calças. Antes de ser espancado pelos demais passageiros, colocou o pênis para fora e ejaculou nas pernas da mulher. Até na semana passada, ao menos 15 pessoas haviam sido presas acusadas de abusos contra passageiras no transporte coletivo de São Paulo apenas em 2014.
`Inapropriado`
Procurada pela RBA, a assessoria de imprensa da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) afirmou que não tem qualquer responsabilidade sobre o spot publicitário, e afirmou que o conteúdo foi preparado pelo Metrô. À reportagem, o Metrô admitiu, em nota, que o conteúdo da propaganda é “totalmente inapropriado” e colocou a responsabilidade por sua veiculação sobre a Rádio Transamérica.
“Assim que tomou conhecimento do referido comercial, totalmente inapropriado, o Metrô consultou a agência responsável pela publicidade e foi informado de que seu conteúdo não só estava em desacordo com o briefing passado como também não fora aprovado – nem pela agência tampouco pelo Metrô.” O Metrô diz ainda que advertiu a Rádio Transamérica, que então “tirou o comercial do ar e informou que a produção desse infeliz comercial é de sua inteira responsabilidade”.
Procurada pela RBA, a assessoria de imprensa da Rádio Transamérica afirmou que está “apurando responsabilidades” sobre a veiculação da propaganda com seus próprios funcionários e com a agência de publicidade que intermediou a relação entre a emissora e o governo do estado. Por isso, não comentou as acusações do Metrô.
Contudo, a Transamérica argumenou que o personagem Gavião, narrador do spot, é caricato e humorístico. “O testemunhal amplamente apontado tem o exclusivo intuito de entreter e divertir o público.” Em nota, disse ainda que “em nenhum momento o texto incentiva atitudes lascivas, pois de forma alguma faz qualquer alusão a qualquer tipo de violência ou abuso sexual”.
Ao empregar o termo “xavecar a mulherada”, continua o texto, o personagem “se refere única e exclusivamente à paquera, conduta licita que acontece naturalmente em qualquer lugar com grande circulação de pessoas”. Por fim, a rádio lamenta que o spot tenha sido veiculado concomitantemente com as ocorrências de abusos sexuais e atentados ao pudor ocorridos no transporte público, “fato absolutamente condenável com o qual a emissora jamais seria complacente.”
Representação
A propaganda irritou dois parlamentares do PT na Assembleia Legislativa de São Paulo. Os deputados estaduais Luiz Cláudio Marcolino e Alencar Santana protocolaram ontem (24) na promotoria de Justiça de Direitos Humanos do Ministério Público uma representação contra o secretário da Casa Civil, Edson Aparecido, e contra os diretores da CPTM, Mário Manoel Seabra, e do Metrô, Luiz Antonio Carvalho Pacheco.
“Não bastasse todo o sofrimento vivenciado pelas mulheres no transporte coletivo, o governo do estado de São Paulo, além da omissão em razão de não assegurar um transporte público digno que garanta a tranquilidade e preservação do direito básico da mulher de não ter seu corpo usado como instrumento da satisfação da lascívia masculina, ao contrário, promove uma campanha publicitária que em nada contribui para a mudança desse estado de coisas e reforça a cultura machista”, diz a representação.
Para os deputados, a publicidade do governo do estado reforça a cultura machista da cantada e da abordagem agressiva das mulheres, banaliza a violência sofrida cotidianamente por elas, contribui para a legitimação da violência sexista e reforça a visão da mulher como objeto passivo do desejo do homem e de que seu corpo é público, por isso pode ser alvo de cantada e de xaveco.