O Benedito e o Sebastião. Em Itaúnas, não faltam padroeiros
Na Festa dos Padroeiros na cidade de dunas do litoral capixaba, os santos se entendem. E o acordo é celebrado por ritos e ritmos. Um registro do sincretismo religioso nacional
Segunda-feira, 24 de março de 2014
Há muitas formas de se contar uma história. Diz a sabedoria popular que quem conta um conto aumenta sempre um ponto e, depois de um tempo, o que se tem é uma versão lapidada pela imaginação valendo como oficial. Verdade. Em Itaúnas, no litoral norte do Espírito Santo, já quase na Bahia, são três as versões verdadeiras sobre o soterramento da vila, nos anos 1970, que levou os moradores a migrar para a outra margem do rio. O fato é relembrado todos os anos, em uma festa de devoção e alegria, redesenhando com delicadeza um Brasil remanescente da época colonial, que se fez pela via da escravidão, quando era preciso cantar no tronco para não sucumbir à tristeza.
A ponte suspensa acima do rio Itaúnas está enfeitada de flores e gente. O curto caminho de ligação entre a vila e as dunas, em janeiro, é mais que trajeto de passeio. Debruçadas sobre os corrimões, as pessoas fitam o céu e esperam a chegada dos barcos com os santos. O som dos rojões faz tremer a base de concreto e atiça a ansiedade das crianças. Uma embarcação a despontar no horizonte é um ponto colorido em meio às águas escuras. Itaúnas, em tupi-guarani, significa “pedras pretas” – e são elas que compõem aquele chão de rio. O grupo de Ticumbi (dança ou brincadeira típica da região, herança dos escravos) ocupa as canoas, vestido a caráter para o festejo tradicional do lugar.
“Venho por devoção. A minha festa mesmo é no dia 1º de janeiro, mas apareço por aqui todo ano pra participar com o meu Ticumbi.” Tertolino Balbino, 80 anos, é de Conceição da Barra – município a que pertence o distrito de Itaúnas. Mestre da brincadeira na cidade natal, no mês de janeiro seu Terto atravessa os 25 quilômetros de estrada de terra para acompanhar de perto a chegada de São Benedito e São Sebastião. A fala contida acompanha os gestos. O olhar é aguado feito o rio, vai para além desse tempo e só aquieta no presente quando alguém o traz de volta, num abraço, pedindo a bênção.
O percurso dos santos completa-se com os pés na terra. Depois de ancorar na margem oposta à cidade, a que faz menção ao passado, o grupo se soma às pessoas e segue em procissão até a Igreja de São Benedito. Itaúnas Velha, como a chamam, era uma vila de pescadores entre o mar e o rio, rodeada de dunas. Um forte vendaval, cuja primeira explicação se justifica pelo desmatamento, ocasionou a mudança para o atual espaço. Em determinadas épocas do ano, é possível encontrar os resquícios da cidade antiga, como o mastro de São Sebastião, em meio à vasta extensão de areia. Se para um visitante a paisagem é uma só, ao nativo é natural reconstruir a história e apontar com firmeza o antigo cemitério, onde hoje só se vê a vegetação rasteira.
O padre mineiro Dário Ferreira da Silva é o convocado para celebrar a missa de São Benedito, na rua que margeia a igreja do santo. Sob o sol escaldante capixaba, de túnica colorida, estampa étnica, fala – por quase uma hora – sobre a simplicidade de São Benedito e de Jesus. Depois discorre: “Celebro a missa há dez anos, fui chamado por um professor amigo. O padre daqui não faz porque diz que o espaço é condenado, não foi abençoado e a seu lado funciona uma lanchonete”. Mas o povo de Itaúnas acata o vigário, negro como o santo. E a lanchonete... Bem, a lanchonete é providencial: “São Benedito não chegou a ser padre. Por conta do preconceito, trabalhava na cozinha do mosteiro. É conhecido por ser o padroeiro das cozinhas”.
No altar, figura também como destaque um retrato de Antero dos Santos, que levantou a igreja, devoto, morador de Itaúnas Velha e fundador do Ticumbi em Itaúnas Nova. Ao completar 70 anos, Antero delegou ao filho, João de Deus, a organização do grupo. Desde então, cabe a ele a escolha dos integrantes, a convocação para os ensaios gerais na roça e para eventos fora da cidade. “A gente canta e dança em devoção ao santo, mas tem também teatro. O mestre de bamba desafia o outro, na espada, e depois, arrependidos, eles se ajoelham diante de São Benedito e pedem perdão”, diverte-se.
Todos os anos Itaúnas se fabula, fazendo emergir da terra o tesouro de uma história calcada em lendas, mistérios antigos e fé. Durante os festejos, a paisagem se transmuta. Naqueles dias, quem por ali circula é visitado pela fantasia. Wanderléia Campos da Paixão, a Dekinha, é uma das pessoas que contribuem para o encantamento. Dona de camping, em dia de São Sebastião ela se veste de “Benedita de Catita” e remonta a segunda versão da história do soterramento.
“Em Itaúnas Velha, o padroeiro da cidade era São Benedito. Mas com a chegada de descendentes de europeus e a vinda, inclusive, de padres italianos, o padroeiro foi mudado para São Sebastião. Não havia concordância no fato de o padroeiro ser um negro. Do dia para a noite, o santo foi tirado do lugar, jogado no rio, e substituído por São Sebastião”, denuncia. “O povo, crente em São Benedito, ficou fulo e resolveu pregar uma peça: substituíram o vinho sagrado, sangue de Cristo, por cachaça e alcoolizaram o padre, que fez a missa bêbado. Passado o pileque, ele disse que nunca mais apareceria naquela cidade, rogou uma praga e o resto já se sabe.”
A personagem Benedita, na verdade, faz menção a uma mulher que viveu em Itaúnas Velha e era devota de São Benedito. Conhecida pela alegria e por um traço característico – um único dente na boca. Aconteceu de, um dia, durante a produção de farinha, quebrá-lo. Benedita resolveu juntar dinheiro e comprar um dente de ouro. Não exatamente porque fosse feliz, ria porque decidira não ficar triste, reinventou-se, e é ela quem se faz presente, na representação de Dekinha, para contar a história do padroeiro. A atriz se descobriu em um curso de teatro e acabou por criar alguns personagens. Tia Verdinha e Ser da Mata tratam de reciclagem e meio ambiente, principalmente em oficinas a céu aberto, realizadas na escola municipal Ciranda Cirandinha.
A terceira versão da história que culminou na cidade submersa quem conta é a também Wanderléia: “Ducatório era uma espécie de Chico Xavier da região. Curandeiro, bom aconselhador, muita gente procurava por ele. Um dia, o filho arrumou uma confusão no bar e o policial matou ele. O outro filho, por vingança, pôs fim à vida do policial. Depois da desgraça na família, Ducatório disse que nunca mais ajudaria ninguém de Itaúnas e também iria embora da cidade. Rogou uma praga e, tempos depois, aconteceu de a vila ser invadida pela areia.”
Imaginário popular ou fatos consumados, por via das dúvidas Itaúnas repousa sob a vigília de São Benedito e São Sebastião. Embora o dia do santo negro seja 5 de outubro, o povo aproveita o ensejo da festa em janeiro, e reverencia os dois. A procissão canta “São Benedito/ que é tão simples como nós/ sabe quem somos/ vai ouvir a nossa voz”, e é a mesma que roga diante do soldado romano morto por se negar a abandonar a fé cristã.
O “alarde”, representação teatral na praça, remonta o caso do roubo de São Benedito e, depois, à reposição – em paz – que o devolveu ao posto de destaque. Faz-se noite quando as pequenas casas acendem suas luzes. Finda a missa, a praça pulsa no ritmo do congo, do jongo, do ticumbi, do caxambu. Todos se reúnem para celebrar a vida, experimentando o sincretismo, traço do Brasil, como numa fotografia em branco e preto. No dia seguinte, feito poeira vítima de um sopro, a realidade toma a vez: os lixeiros recolhem o crepom dos enfeites, as crianças inundam as ruas e torcem para que o próximo ano chegue depressa. E não chega. Na vila de pescadores, viver de enquantos é o que se faz de fevereiro a dezembro.