Rumo para outra vida, ensino técnico para jovens da Fundação Casa ainda é exceção
Dos 9 mil internos de São Paulo, apenas 19 foram aprovados neste ano em escolas técnicas ou faculdades de tecnologia
Terça-feira, 18 de março de 2014
São Paulo – “Não sou acostumado, sabe? Minha família não tinha muitas chances de vida. Eu nunca tinha estado em uma escola assim, com laboratório e vestiário”, conta, animado, o jovem A.L., de 18 anos, que cumpre medida socioeducativa na Fundação Casa de Jacareí, no interior paulista. Entre os aproximadamente 9 mil internos do estado, ele foi um dos 19 aprovados no processo seletivo de Escolas Técnicas Estaduais (Etecs) e Faculdades de Tecnologia (Fatecs) e é considerado pela própria instituição como “exceção, não regra”. “Estou conhecendo outra vida e outro tipo de pessoas. Quero continuar estudando para sempre.”
Da unidade de Jacareí, considerada modelo por especialistas, outros cinco internos foram aprovados em Etecs. Quatro deles já estão em liberdade – uma vez que o tempo de internação depende da evolução do adolescente na medida socioeducativa e não de um período determinado. Outro interno, F.G., de 18 anos, foi aprovado na Fatec da cidade, no curso de Meio Ambiente. “Na hora que minha mãe veio aqui me ver, o sorriso dela ia lá na orelha. Percebi que vale muito a pena investir no conhecimento”, diz, satisfeito.
As possibilidades oferecidas nas instituições de ensino contrastam com a rotina na unidade: um ambiente cercado por grades, com atividades fixas e horários rigorosos. Os internos seguem de uma para a outra com as mãos para trás, em um silêncio quase angustiante – que impera até na hora do lanche. A única comunicação era o mecânico cumprimento “senhora!” cada vez que cruzavam, em fila, com a repórter que visitou a unidade. Lá dentro todos parecem iguais, do uniforme ao corte de cabelo. Fora dos portões, a situação muda.
A possibilidade de estudo fora da fundação, vista pelos internos como uma oportunidade de recomeço, ainda é restrita a poucos: falta incentivo e sobra resistência do Poder Judiciário em ampliar o número de internações em liberdade assistida, o que permitiria aos jovens frequentar as aulas em escolas convencionais. “A aprovação é mais por mérito deles do que por um trabalho realizado. Certamente são jovens que se envolveram de forma eventual com o crime, mas que já estavam em um estágio avançado da escolarização”, avalia o membro do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescentes (Condeca) Ariel de Castro Alves.
A maioria dos jovens em conflito com a lei apresenta elevada distorção série-idade. Ao todo, 57% dos adolescentes encaminhados que cumpriam medida socioeducativa no país em 2012 não frequentavam a escola, segundo uma pesquisa do Conselho Nacional de Justiça. Embora a idade média dos internos seja de 16,7 anos, a última série cursada por 86% deles ainda era do ensino fundamental, o que significa que a maioria não concluiu a etapa obrigatória da educação, segundo a pesquisa.
O estudo é parte compulsória da medida socioeducativa, garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É oferecido por professores da rede estadual da escola mais próxima e o diploma é emitido em nome da unidade de ensino, sem nenhum vínculo com a Fundação Casa. As unidades devem ter espaço para as aulas, que ocorrem em salas multisseriadas, com alunos de diferentes idades e séries. Em Jacareí são três turmas: 1º ao 5º ano, 6º ao 9º ano e ensino médio.
“É muito difícil para eles conseguirem entrar em uma Etec ou uma Fatec devido à prova de seleção. Como eles estão em grande defasagem escolar, dificilmente conseguem concorrer com os que estão no ensino regular. Precisamos de cotas especificas para os jovens egressos de medidas socioeducativas”, avalia Alves. “Eles têm grande dificuldade para conseguir estudar depois do período escolar. As unidades não têm biblioteca e eles não podem levar o material didático para os quartos, que são verdadeiras celas.”
A Fundação Casa tem um convênio firmado com as Etecs e Fatecs para oferecer aos internos a oportunidade de participar do processo seletivo. Em Jacareí, o segredo foi o apoio da equipe: as atividades foram reorganizadas para que os candidatos tivessem mais tempo para estudar. Além disso, os profissionais que trabalham na unidade colocaram à disposição para eles as provas antigas e se mobilizaram para pesquisar e esclarecer dúvidas com os professores do ensino regular.
“Os que estão no primeiro ano podem fazer o ensino médio integrado ao técnico. Os que estão no segundo, no terceiro e os que concluíram o ensino médio podem fazer o curso isolado. São muitas possibilidades e a Fundação Casa não consegue viabilizá-las”, avalia o professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Roberto Silva, que é especialista no tema. “Os internos podem iniciar cursos ainda no regime de internação e têm vaga garantida em qualquer escola perto da casa deles depois de libertos. Então, 19 é um número muito insignificante.”
Os percentuais são ainda menores quando se trata de acesso ao ensino superior convencional: em São Paulo, 838 adolescentes internos na Fundação Casa se inscreveram no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) no ano passado, dos quais 612 ainda estavam cumprindo a medida socioeducativa dentro das unidades na data da prova, segundo a instituição. Até fevereiro, apenas nove deles conseguiram uma vaga em universidades pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu) ou pelo Programa Universidade para Todos (ProUni).
“Essa possibilidade é ainda mais reduzida quanto estão no regime de internação. Eles precisam de uma autorização para sair e os juízes têm sido muito resistentes”, diz Silva. “O ideal seria colocar os meninos que estão no ensino médio em casas de semiliberdade, onde a flexibilidade é maior. Isso não ocorre por resistência do Poder Judiciário, baseada no julgamento da gravidade do ato infracional. Eles estão próximos dos 18 anos, alguns são reincidentes e, na avaliação de promotores e juízes, isso dificulta a liberação.”
Em Jacareí, todos os internos que conseguiram vaga têm autorização para deixar a unidade para estudar. Eles vão para as aulas acompanhados de um profissional que fica no prédio, sem qualquer identificação. Apenas as direções das escolas sabem que os jovens cumprem medida socioeducativa. “Saímos para fazer coletas e estudos de campo. Estudamos fungos, bactérias, plantas, solo, ar, possibilidades de contaminação por empresas, quais os equipamentos menos poluentes e como reduzir a contaminação do ar, rios e solos. É bastante importante”, diz C.J., de 17 anos, que faz o curso técnico de Meio Ambiente na Etec.
Diretrizes nacionais
Na tentativa de reverter o cenário, o Conselho Nacional de Educação (CNE), ligado ao Ministério da Educação (MEC), vai elaborar uma série de diretrizes nacionais para a educação de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa no Brasil. Trata-se de uma recomendação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), que contará com a participação do MEC, da Secretaria de Direitos Humanos e do Ministério do Desenvolvimento Social.
A primeira reunião foi na última semana, em Brasília, contará com representantes de estados cuja situação dos adolescentes em conflito com a lei é considerada mais crítica. “Formamos um grupo que vai elaborar um parecer e um projeto de resolução que serão levados ao ministro da Educação (Henrique Paim) nos próximos meses”, diz o coordenador da comissão responsável pela elaboração das diretrizes, Luiz Roberto Alves.
A garantia de educação profissional e técnica será uma das prioridades do documento. “Não há uma regulação nacional que determine, por exemplo, onde ocorrem os estudos, quais as modalidades oferecidas e qual a qualidade delas. As metodologias, os locais de aula e a formação dos professores são muito discrepantes nos estados”, afirma o conselheiro. “Vamos ouvir a sociedade o mais amplamente possível. Faremos reuniões técnicas, simpósios e audiências públicas.”
Desafios
Uma das principais dificuldades é justamente as salas multisseriadas, que misturam alunos de diferentes etapas do ensino. “Os professores não têm como fazer um trabalho focado. Uma solução seria selecionar unidades que pudessem receber só meninos que, por exemplo, estejam cursando o ensino médio”, sugere Silva. “Quando o interno conseguisse o diploma do ensino fundamental ele poderia ser premiado com a transferência para uma unidade de ensino médio, onde os professores pudessem fazer um trabalho mais específico.”
“Nas salas multisseriadas estão jovens que mal sabem escrever com outros já bastante avançados, que não vão se interessar pela alfabetização. Isso dificulta bastante”, diz Ariel de Castro Alves, do Condeca. As novas unidades, como a de Jacareí, são compactadas, organizadas em andares, com salas de aula pequenas. “Não são usados meios tecnológicos. Existem laboratórios de informática, mas eles não estão vinculados à educação formal e sim a cursos específicos, que não oferecem vagas para todos.”
Outro desafio é garantir a continuidade dos estudos depois do cumprimento da medida socioeducativa. De acordo com uma pesquisa conduzida por Silva em Araraquara, em 2010, 100% dos egressos da Fundação Casa acompanhados por ele na cidade abandonaram os estudos depois de colocados em liberdade.
“Dentro das unidades a escolarização é obrigatória e eles retornam aos bancos escolares, mas apresentam muitas dificuldades”, diz. “Quando saem, a maioria não dá continuidade, por dificuldade das escolas de recebê-los. Só o fato de serem egressos da Fundação Casa coloca neles o rótulo da Febem (antiga Fundação para o Bem Estar do Menor), e isso é suficiente para a rejeição. Faltam profissionais que saibam receber e lidar com esses alunos.”
O ideal, segundo Silva, é que eles tenham um acompanhamento sistemático depois de sair da Fundação Casa. Comumente, eles deixam o regime de internação e passam para o de liberdade assistida, quando são acompanhados por uma organização não governamental da região, que fica responsável por acompanhá-los. “O trabalho tem sido insuficiente porque os educadores das ONGs muitas vezes têm dificuldade no relacionamento com a escola. Sozinhos, dificilmente eles vão atrás da possibilidade de continuar os estudos. Sem apoio, orientação e acompanhamento sistemático eles normalmente não tomam essa iniciativa.”
Ariel de Castro Alves concorda: “É muito comum ter que acionar conselhos tutelares, o Ministério Público e as diretorias de ensino, ameaçando escolas para que cumpram a lei e matriculem esses jovens”, diz. “Além disso, como a educação nas unidades em geral é fraca, os egressos acabam não conseguindo acompanhar as aulas na escola regular, se desmotivam e desistem.”
“Nós não temos como concorrer com o crime se não oferecermos oportunidades educacionais efetivas, com incentivos inclusive financeiros, para bolsas de estudos”, continua. “A ideia era que o jovem recebesse estrutura para restabelecer vínculos com a família e criar um novo projeto de vida, no qual a prioridade seja a educação e não o consumismo. Se o estado não apoia, o menino acaba voltando para o crime. Se o estado exclui, o crime vai acabar incluindo e não vamos conseguir evitar isso apenas com palavras, conselhos e orientações.”