Metais preciosos e a “exportação” de crianças no Congo

Os interesses das transnacionais por minérios inviabilizaram todos os projetos políticos que visavam organizar o Estado e criar uma sociedade democrática

Por Achille Lollo de Roma (Itália) para o Brasil de Fato
Quarta-feira, 15 de janeiro de 2014


Nos últimos dois anos a capital do Congo Democrático, Kinshasa, foi visitada por centenas de casais europeus, em particular italianos, canadenses e estadunidenses, que chegavam nesse país africano para concluir, com muitas facilidades, o processo de adoção de crianças que perfazem o montante de 250 mil meninos e meninas que as guerras civis deixaram abandonados nas ruas.

É inútil dizer que a facilidade em obter a documentação para a adoção passava pelas propinas que eram pagas a todos os funcionários, do juiz até o escrivão que carimbava a autorização para o menor adotado sair do país.

Um contexto que veio à tona quando o governo congolês interditou as adoções após ter descoberto que uma criança havia sido adotada por um casal gay canadense e que outros casais estadunidenses haviam trocado as crianças entre eles. Proibição que no último mês de dezembro atingiu 40 casais, na maioria italianos, que já haviam registrados as crianças em seus respectivos consulados, enquanto esperavam que a propina fizesse seu efeito.

Esse fato fez com que muitos jornais e TVs europeias e estadunidenses começassem a falar da conjuntura do Congo Democrático com o simples objetivo de pressionar o governo de Kinshasa para que ele voltasse a autorizar a “exportação” de suas crianças de rua.

Foi nesse âmbito que Mukungubila Mutombo, líder de uma seita cristã que interpreta a bíblia com ritos animistas e que é bastante ramificada nos arredores da capital, Kinshasa, armou sua “Jeunesse” (juventude da seita) com metralhadoras, pistolas e muitos facões, para atacar o prédio onde se reuniam os generais do Estado Maior. Quando os 400 jovens suicidas começaram seus ataques, o “pastor Mutombo” veiculou na rede um vídeo pedindo ao presidente Joseph Kabila para se demitir por ele ser da etnia ruandense tutsi e por ter transformado as eleições de 2006 em um grande “imbróglio”. É bom lembrar que o aspirante golpista nessas eleições recebeu apenas 0,50% dos sufrágios.

Guerras civis

A intentona do pastor Mutombo reabriu a ferida das três guerras civis que ensanguentaram o país. De fato, a tentativa de golpe foi desferrada uma semana antes da Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da Região dos Grandes Lagos, que se realizará em Luanda, capital de Angola, para discutir a paz e a estabilidade na região, e para avaliar a realização das negociações entre a República Democrática do Congo e o Movimento M-23, que em 2012 foi o protagonista da terceira guerra civil.

Por outro lado, ao mesmo tempo em que o “Profeta do Eterno’, ou seja, o pastor Mutombo, vestia o casaco de aspirante golpista, na região norte de Kivu, as aldeias, Musuku e Mwenda, eram atacadas por grupos armados que massacrou todos os civis que encontraram no seu caminho. Outro grupo armado, desta vez na província do Katanga, atacava em Lumunbashi as unidades da Guarda Presidencial, tentando assassinar o presidente Joseph Kabila.

Esses fatos reacenderam o temível drama da guerra civil, que na história do Congo Democrático sempre começaram com ataques suicidas na capital Kinshasa ou em Lumunbashi para distrair as principais unidades do exército, enquanto as mais importantes áreas mineradoras da província de Kivu Norte eram ocupadas por grupos fortemente armados procedentes de Ruanda ou Uganda.

A desastrada intentona do “Profeta do Eterno”, na realidade, fez estremecer o regime de Joseph Kabila, mostrando todos seus limites políticos e suas contradições socioeconômicas. Porém, para evitar a ruptura das negociações com o movimento rebelde M-23 e a postergação da 6ª. Cúpula de Chefes de Estado dos Grandes Lagos – formada por Angola, República Democrática do Congo, República Centro Africana, Zâmbia, Sudão, Sudão do Sul, Tanzânia, Quênia, Burundi, Ruanda e Uganda – o exército congolês realizou uma massiva e sangrenta “operação antiterrorismo” nos bairros de Kinshasa controlados pela seita do pastor Mutombo, para depois fechar em um cerco mortal os grupos que haviam conseguido entrar na redação de uma rede de televisão e nos hangares do aeroporto. Enquanto na capital o exército acabava com os últimos resistentes da “Jeunesse” do pastor Mutombo, as unidades especiais retomavam as aldeias, Musuku e Mwenda, descobrindo que o massacre foi efetuado por rebeldes ugandenses da ADF/Nalu que, oficialmente, não teriam nenhuma ligação com o pastor golpista. Porém, dúvidas permanecem, visto que o pastor e seus mais estreitos colaboradores fugiram mesmo de Uganda.

Foi um banho de sangue que em poucas horas acabou com a vida de quase 200 pessoas, na maioria jovens, trazendo novas questões: “quem protegia o pastor Mutombo? Quem estava interessado em um golpe de estado nesse momento? Quem queria a morte do presidente Josepf Kabila?

Um Estado fajuto

Quando Laurent Desiré Kabila (pai do atual presidente), em 1996, entrou vitorioso em Kinshasa, todo mundo estava convencido que o Partido da Revolução Popular (PRP), sob a direção de Kabila, teria acabado em pouco tempo com o velho e corrupto Estado do Zaire. Um Estado, é bom lembrar, criado pelo déspota Mobutu Sese Seko para satisfazer os interesses das transnacionais e dos clãs étnicos que garantiam o “controle social” das principais tribos.

Tais considerações se justifi cavam tendo em vista que Laurent Desiré Kabila foi um intelectual de esquerda que, em 1960, havia apoiado a nomeação de Patrice Lumumba. Depois liderou uma guerra de guerrilha na província do Kivu, recebendo o apoio de Che Guevara até se desentender com ele. Se manteve distante do lacaio neocolonialista Tchombé e até 1967 ameaçou com as armas o regime de Mobutu.

Infelizmente, o marxista-coletivista que havia estudado na Universidade de Tirana, na Albânia de Enver Hoxha, cometeu muitos erros. O principal foi entregar a administração do Estado e do exército aos clãs da sua etnia tutsi. Desta forma, mudou-se de uma nomenclatura para outra e a essência do Estado criado por Mobutu permaneceu. O antigo Zaire passou a se chamar Congo Democrático, porém a corrupção, a incompetência, a falta de democracia, o desrespeito pelos direitos civis e a arrogância do poder continuaram na mesma. A única diferença é que agora no “Palácio” se fala em francês, enquanto antes se falava em lingala.

Hoje o Congo Democrático, apesar de ter registrado em 2011 um crescimento de quase 12%, continua sendo o país africano onde a maioria da população é a mais carente do continente africano. Por isso, é necessário lembrar que cerca de 300 mil pessoas morreram em confrontos durante três guerras civis. Porém, no mesmo período, mais de quatro milhões de congoleses faleceram por causa da fome e de doenças provocadas pelas guerras que ajudaram a determinar o desaparecimento de instituições e serviços públicos.

Dos 72 milhões de congoleses, cerca de 50 milhões vivem na pobreza absoluta, porque não há mais distribuição de renda e sim uma descontrolada apropriação das riquezas nacionais por parte dos clãs e dos chefes tribais que vislumbram se enriquecer praticando o contrabando de metais raros ou, passando a proteger com milícias armadas os territórios onde as companhias estrangeiras que exploram as minas de cobre, estanho, tungstênio, ouro ou diamantes.

Atualmente, a província do Katanga vive em um permanente estado de sítio porque a descoberta de urânio e de petróleo acendeu a cobiça das transnacionais ocidentais. Assim, para evitar que o presidente Joseph Kabila assine contratos de partilha com as empresas chinesas, os agentes das transnacionais alimentam o histórico separatismo dos chefes tribais katangueses.

Mais contundente é a situação na província de Kivu Norte onde cerca de 1 milhão de pessoas, incluindo crianças, trabalham como animais nas minas à procura de uma pedra de coltan, um bloco de tântalo ou de cobalto que, depois, irão revender para além da fronteira, onde fica centralizado o contrabando de metais raros.

A seguir, outros intermediários ligados à “nomenclatura étnica do governo ruandense” se beneficiarão vendendo esses minérios às matrizes das transnacionais que fabricam componentes eletrônicas ou telefones celulares. Desde seu primeiro dia de independência, em 1960, a riqueza do subsolo se tornou um drama para o Congo Democrático, visto que as potências ocidentais, e sobretudo suas transnacionais, não admitiram renunciar à tamanha riqueza, impedindo a consolidação da soberania nacional e a implementação da democracia.

*Achille Lollo é jornalista italiano, correspondente do Brasil de Fato na Itália e editor do programa TV “Quadrante Informativo”.




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