Grupo espanhol usa ópera e música clássica para protestar
Nascido no movimento dos indignados, Solfônica recupera peça escrita em 1992
Sábado, 26 de outubro de 2013
Em meados de 1992, quando o mundo se maravilhava com a transformação pela qual havia passado a cidade de Barcelona para receber os Jogos Olímpicos do mesmo ano, o economista José Manuel Naredo já se preocupava com a situação do mercado imobiliário espanhol, aquecido pelos grandes eventos que o país receberia nos anos seguintes. Neste contexto, e a pedido de um amigo que lecionava em um conservatório de música, Naredo escreveu um libreto de uma pequena ópera que tratava, de forma irônica, o perigo de uma bolha imobiliária já prevista por diversos economistas. Entretanto, a ópera acabou ficando apenas no papel e a bolha imobiliária foi remediada com sucessivas desvalorizações da peseta espanhola.
Com a entrada em vigor do euro, os créditos facilitados pela política monetária europeia e os seguidos estímulos dos sucessivos governos espanhóis, o mercado imobiliário na Espanha voltou a superaquecer e, finalmente, com a crise de 2008, a bolha estourou. Em um cenário muito parecido ao de 1992, a Solfônica, grupo que nasceu nas manifestações do dia 15 de maio de 2011 no movimento dos indignados espanhóis, conhecido por 15M, resolveu resgatar o libreto original de Naredo. Após algumas atualizações, nasceu a peça “El Crepúsculo del Ladrillo” (O Crepúsculo do Tijolo), que narra a história de um povo vítima de políticas de austeridade impostas pelo próprio governo e por entes externos.
A peça foi apresentada pela primeira vez em maio deste ano, para comemorar os dois anos do movimento 15M e, devido ao sucesso, foi reencenada em outubro. Todas as apresentações lotaram o centro social La Tabacalera, na cidade de Madri, e geraram filas que davam a volta no quarteirão do local da ópera. O libreto foi musicado por David Alegre, membro da Solfônica, e contou com a participação dos músicos e cantores do grupo. “Foi a primeira vez que eu me dediquei a escrever este tipo de música”, lembra Alegre, diretor musical da Solfônica, “e também foi a primeira vez que nós nos dispusemos a tocar um projeto desta magnitude”.
“A ópera demanda muitos ensaios porque, além de 40 minutos de música, é composta por muitos movimentos musicais e de atuação”, explica o músico, que, além de integrar a Solfônica, dá aulas em um conservatório na capital espanhola. Apesar dos contratempos, Alegre afirma que a ópera “foi uma experiência fantástica” e que por isso decidiram reencená-la cinco meses depois das primeiras apresentações.
Música contra a crise
“Eu sempre me interessei pela política”, conta o engenheiro Luiz González,”mas não sou um militante de partido político. Me sinto incomodado com estruturas de partidos, mas, entretanto, quando vi estas pessoas cantando na praça Puerta del Sol, a emoção foi muito forte”. A motivação de González é a mesma da maioria dos integrantes da Solfônica. A grande maioria deles resolveu integrar-se ao grupo para canalizar uma insatisfação com a situação política do país, mas de uma maneira que não representasse a mesma estrutura que eles criticavam.
“Consideramos que a arte tem uma função reivindicativa fundamental. Em momentos de dificuldades e de crises, a expressão artística é fundamental”, explica Alegre. Em seu principio, o grupo era formado por músicos e estudantes de música, mas aos poucos a composição do coro foi evoluindo com a presença de simpatizantes e entusiastas.
Os integrantes possuem entre 35 e 60 anos e ensaiam uma vez por semana. A maioria deles frequenta aulas de música oferecidas pelo próprio grupo. Segundo González, a Solfônica conta com 140 membros, entre integrantes ativos e mais antigos. “Como é uma ação colaborativa, muita gente não tem tempo para participar de todos os ensaios ou apresentações”, explica o engenheiro. De acordo com ele, cada apresentação reúne entre 30 e 50 membros da Solfônica.
O grupo se apresenta até três vezes por semana, sempre em manifestações, concentrações e atos reivindicativos. Cada apresentação é feita a convite dos organizadores dos atos e discutida em uma assembleia. “Nosso trabalho pode servir para ajudar as pessoas que estão em luta diariamente. Há grupos que levam lutas bastante duras, como a Plataforma Antidespejos”, afirma Alegre. “A música ajuda a amenizar o esforço da luta e as letras recordam histórias que já passaram e com as quais podemos aprender.”
Questionado pela reportagem de Opera Mundi sobre o motivo do sucesso do grupo, González afirma que ”as pessoas gostam desta forma de fazer política, quando nos escutam cantar, sentem que fazem parte de algo muito maior e que existe algo mais do que isso que está aí fora”.