Desnaturalizar o assédio e empoderar as mulheres

Entendo os argumentos contrários, mas penso não oferecer opção para mulheres que sofrem assédio em espaços públicos é uma das faces mais cruéis do Machismo

Por Debora Pereira
Sexta-feira, 11 de outubro de 2013


Causou muita polêmica o projeto de Lei 138/11 apresentado na Câmara Municipal de São Paulo pelo vereador Alfredinho, Líder da Bancada do PT, para reservar espaços exclusivos às mulheres no transporte coletivo da cidade de São Paulo. Artigos contrários, manifestações positivas nas ruas e muita polêmica na imprensa e nas redes sociais fez com que o primeiro objetivo do projeto tenha sido alcançado: desnaturalizar um tipo violência absolutamente comum nas grandes cidades.

Entendo os argumentos contrários, mas penso não oferecer opção para mulheres que sofrem assédio em espaços públicos é uma das faces mais cruéis do Machismo.

Falo a partir da perspectiva de alguém que ajudou a formular essa proposta, dialogada com as mulheres do mundo real, as trabalhadoras que enfrentam a saga do transporte coletivo no cotidiano e que dificilmente encontram conforto quando expostas a qualquer tipo de violência de gênero (o feminino, óbvio), seja o assédio moral no trabalho, a agressão do companheiro ou a vulgarização do corpo da mulher na mídia, no comércio, nas ruas. As mulheres do mundo real, que sabem o quanto vivemos em uma sociedade de contradições, elegendo a primeira mulher presidenta do país, mas atribuindo aos estereótipos da sua condição de mulher tudo o que se reconhece como problema na condução do país.

Ouvi dizer que o projeto é machista porque nós mulheres somos maioria na cidade e colocar-nos em um vagão separado não seria a saída, ao passo que os homens devem é parar de cometer absurdos e assédios. Em suma, o projeto é machista porque responsabilizaria a vítima. Como se todas as grandes questões fossem assimiladas por um simples desejo daqueles que militam na área.

Que bom seria se vivêssemos em uma sociedade capaz de respeitar os direitos das mulheres por convicção, por cultura. Que bom seria se fossemos dormir e acordássemos neste mundo ideal. Mas como a superação do Machismo é algo que não se constrói por decreto ou com medidas conciliadoras, é preciso tirar as máscaras e desnudar essa violência tão nefasta, da qual ouso dizer que todas as mulheres que utilizam o transporte coletivo no país já sofreram. Machista é deixar desamparadas as mulheres que sofrem essa realidade.

Enfrentar o debate é a única forma de proporcionar autonomia feminina para coibir esta violência. É por isso que absolutamente questiono qualquer compreensão “vitimizadora” porque observo na propositura uma medida concreta de empoderamento da mulher para denunciar esses abusos. Hoje apontar essa agressão dentro de um espaço em que não há qualquer autoridade para recorrer é apenas mais uma forma de constrangimento e, aí sim, de vitimizar a mulher.
Perguntaram também sobre os gays e em que espaços estes estariam. Respondo com tranquilidade que orientação sexual e gênero são coisas distintas, pois nem sempre um gay ou uma lésbica possui uma identidade de gênero diferente daquela da Certidão de Nascimento. Portanto, é muito simples: uma travesti ou um/uma transgênero vai ocupar no ônibus o espaço que lhe deixar mais confortável, aquele de sua orientação. E isso não precisa constar no projeto, tendo em vista que a técnica de elaboração legislativa sugere que os PLs sejam superficiais e indicativos, para evitar o vício de iniciativa e discutir na regulamentação da Lei os detalhes de sua aplicabilidade.

Uma companheira perguntava em seu perfil de uma rede social se a mulher que não estivesse no espaço exclusivo era um sinal de que poderia ser assediada. Apesar de aparente anedota a postagem na verdade disfarça em ironia uma incapacidade de reflexão, porque se fosse para partir do senso comum eu poderia deduzir que quem é contra este PL é a favor do assédio no transporte público. E é óbvio que vou admitir sofismas, porque prefiro o debate profundo e vi argumentos muito inteligentes contra a proposta, que valem para identificar problemas e ajudar a melhorar o projeto.

O que mais de positivo veio à tona com esse PL, para além do tema em si, foi ver a face mais desconectada da realidade das "pseudo-vanguardistas" do feminismo e a incapacidade de reflexão de setores reacionários da sociedade. Falar de espaço da mulher sem reconhecer que estamos invisíveis como sujeitas nos espaços públicos é desconhecer como vivem as mulheres do mundo real. No ônibus, na fila do banco, em frente às construções e até dentro de casa, não passamos de pedaços de carne, ajudadoras dos homens ou mero acessório.

Demagogia e debates superficiais não contribuem em nada neste caso. Demarcar o espaço da mulher no ônibus ou onde quer que seja, é demarcar que estamos insatisfeitas com o espaço onde estamos. Demarcar espaço no ônibus não tem a ver com diminuir a mulher, mas nos empoderar para o debate público, franco e aberto de um tipo de violência que já está naturalizado no imaginário popular.

As cotas para mulheres nos espaços políticos e para negros nas universidades, ações concretas de enfrentamento às desigualdades, estão longe de ser unanimes e a guerra para implantá-las foi e continua sendo duríssima. Contudo, a eficácia destas políticas é inegável.

Identifico na proposta uma ação de campanha, não um fim em si mesmo, muito menos uma determinação pelo fim do assédio no transporte coletivo. Mais do que uma faixa ou um vagão, a sugestão de um companheiro para que a frase “espaço livre de assédio” identifique estes locais. Acredito que as experiências de Rio de Janeiro e Brasília, com suas especificidades e constatações, também devem ajudar a tornar a medida mais eficaz.

Acredito que a polêmica e o contraditório são fundamentais para formulações como esta. Como no PT temos o hábito de não fugir de um bom debate e, mais do que isso, aprender com ele, vamos à luta.

Debora Pereira é jornalista, membro do coletivo de Mulheres do PT da Capital e Coordenadora de Assuntos Institucionais da JPT-SP.




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