Neopopulismo cor-de-rosa e o lugar da Mulher nos transportes públicos

A questão central é o assédio sexual e o constrangimento que as mulheres sofrem cotidianamente nos transportes públicos, praticados por molestadores que se aproveitam da superlotação crônica nos transportes de grandes e médias cidades nos horários de pico

Por Marta Regina Domingues
Terça-feira, 8 de outubro de 2013


Agora virou moda. O neopopulismo político se firma na cor-de-rosa nos transportes públicos. Os projetos de lei e as leis já aprovadas são todas semelhantes e de autoria de legisladores e legisladoras – nas Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais – de distintos partidos e com posições ideológicas até contraditórias. Trata-se da reserva de vagas, composições ou de parte da frota nos transportes públicos, ônibus, trens e metrôs, exclusivamente para mulheres das grandes cidades e metrópoles brasileiras.

A questão central é o assédio sexual e o constrangimento que as mulheres sofrem cotidianamente nos transportes públicos, praticados por molestadores que se aproveitam da superlotação crônica nos transportes de grandes e médias cidades nos horários de pico.

As leis já implantadas na cidade do Rio de Janeiro (autoria do PMDB/2006) e no Distrito Federal (autoria do PPS e PRB/2012) já se mostraram inócuas e inexequíveis, como bem retratado em vídeos postados na Internet. Existem ainda projetos parecidos na Assembleia Legislativa de São Paulo (autoria do PSDB), em Curitiba (autoria do PSC), e o recentíssimo aprovado em primeira sessão por unanimidade na Câmara Municipal de São Paulo, de autoria do líder da bancada do PT.

Fica claro que nossa sociedade está carente de personalidades públicas que se deem ao diálogo, pois, apesar das boas intenções, proliferam leis como essas, feitas no calor das demandas e clamores populares, que certamente dão muita visibilidade à classe política, mas que propõem soluções irreais e paliativas sem pesar maiores consequências.

As mulheres são cotidianamente vítimas de abusos e desrespeito nos transportes coletivos. No Metrô, ainda temos as câmeras que comprovam abusos e seus autores, e algum policiamento, embora sem nenhuma consequência prática para a punição desses abusadores. Nós, mulheres, cedo aprendemos e sabemos muito bem que a melhor defesa é o ataque público, por isso, não raro vemos mulheres indignadas, acusando aos gritos e impropérios, um sem número de gaiatos e desequilibrados que pensam que nosso corpo nasceu para seu deleite e uso, e que têm certeza da impunidade e da cumplicidade da maioria da sociedade.

Mas a principal questão é que sociedade queremos construir: uma sociedade de direitos, respeito à diferença e apreço à cidadania; ou uma sociedade que fracassou na construção de seus espaços públicos e na garantia dos direitos civis?

O assédio às mulheres nos transportes públicos é uma questão antiga e bastante complexa. Requer campanhas educativas que valorizem os direitos das mulheres e evidenciem e constranjam os abusadores. Requer mais transportes públicos e de melhor qualidade – inclusive porque os abusos não ocorrem apenas com as mulheres, infelizmente; mas também com crianças, adolescentes masculinos e por que não dizer – também com homens. A questão de fundo é que as mulheres, vítimas do machismo e do patriarcado, são vistas como disponíveis à qualquer aproveitador, e a sociedade, em geral, aplaude a “ousadia” desses machões covardes e doentes de plantão. Requer mudança na segurança pública, com policiamento (devidamente capacitado) ostensivo e preventivo – e ação efetiva com punições reais.

O congresso nacional está revendo o Código Civil Brasileiro. Ainda bem que o crime de assassinato contra as mulheres deixou de ser impune, já que há algumas décadas, qualquer rufião podia matar a mulher em defesa de sua “honra”, e ir tomar café na esquina, “coitado”. Mas não será o momento de defender a dignidade humana e coibir esses abusos, que são notórios, em nome do direito a ser cidadã e cidadão? Prestar serviços à comunidade por alguns meses já seria uma boa medida socioeducativa.

Enfrentar com seriedade esse debate na sociedade exige negar práticas políticas nas quais se arroga a defesa dos interesses das classes de menor poder econômico, a fim simplesmente de conquistar a simpatia e a aprovação popular. Em vez disso, nossos parlamentares, homens e mulheres, por unanimidade, preferem pintar ônibus, trens e metrôs de cor-de-rosa (parece piada) e a falsear a ideia de que estão “protegendo”, mas na verdade segregando 58% da população – o percentual de mulheres que utiliza todos os dias transporte público na cidade de São Paulo.

O cinismo não é uma bom conselheiro quando se trata de políticas públicas universais. Quando estas leis são aprovadas, logo a mídia corre para entrevistar as mulheres que conseguiram se acomodar nos espaços exclusivos (que como já vimos, não duram muito tempo). É claro que elas aprovam e enaltecem a iniciativa, mas é por pouco tempo, pois no dia seguinte, talvez não consigam repetir a façanha de conquistar um lugar em detrimento de centenas que ficaram “de fora”, no vagão ou na vaga ao lado.

Quando as mulheres não conseguirem entrar nos espaços “exclusivos” serão tratadas como ainda mais disponíveis, culpabilizadas pela agressão que sofrem? Quando estiverem com filhos e acompanhadas de homens, seus companheiros, parentes, esposos, amigos – serão alijadas do direito de viajar com eles, em nome de sua “boa fama”? Teremos dois tipos de mulheres: as cor-de-rosa e as… O quê? E os homens, serão todos, sem exceção, potenciais molestadores? Que sociedade é esta?

Penso que as mulheres estão cansadas do assédio que sofrem nos transportes públicos, mas também não é seu sonho de sociedade serem segregadas em vagões exclusivos e, sim, respeitadas como cidadãs que são, tendo o direito de ir e vir e circular em qualquer ambiente público, em companhia de quem quer que seja. Qual será o próximo passo de nossas brilhantes personalidades públicas, voltar ao século 18 e 19 e instituir calçadas nas ruas e lugares interditos diferentes para homens e mulheres, como foi feito para marcar e segregar os negros e negras libertos da escravidão?

Os argumentos em defesa das vagas exclusivas são muitos, e representam vitórias políticas de mandatos que pretendem atender aos reclames de bases eleitorais, geralmente das periferias – afinal a grande massa da população que mais sofre com o descalabro do transporte público no país. E as críticas são recebidas com cinismo, pois pressupõe-se partem de quem não anda de coletivos e de quem não sabe o que pensam as mulheres do povo.

Vejamos o exemplo da cidade de São Paulo. As mulheres, todas elas, que pegam ônibus, metrô, trem todos os dias, no Grajaú, na Zona Leste, no Tucuruvi e em todos os bairros da cidade de São Paulo, que tem duplas e triplas jornadas de trabalho, com afazeres por realizar, crianças para buscar na escola, alimentação para providenciar, casas para limpar e tantas outras responsabilidades, quando não puderem esperar vagas no próximo coletivo para utilizar o espaço cor-de-rosa que a Câmara Municipal está por aprovar, além de tudo, provavelmente serão hostilizadas, desrespeitadas ainda mais.

E quando algum cidadão, que também não puder esperar o próximo coletivo que tenha vagas em áreas não cor-de-rosa, quiser exercer seu direito a ir e vir, os vereadores e vereadoras estarão lá para garantir a “exclusividade” para as mulheres? Se a lei que criaram, na verdade não garante exclusividade, nem qualidade, pontualidade e eficácia para a mobilidade urbana das mulheres paulistanas, e se não há punição para os “infratores” (afinal, homens portadores de direitos também), francamente, é mero proselitismo de vossa parte.

Se nossos/as parlamentares quisessem realmente solucionar o problema, andariam de transporte coletivo, nestes mesmos bairros e em horários de pico, e já teriam percebido que esta medida é absurda e impraticável, que além de antiética do ponto de vista de políticas universais e garantia e promoção de direitos, irá gerar mais discriminação e violência contra a mulher.

Certamente esta não é uma política quer afirme direitos, mas sim marcada pela arbitrariedade, pois nela, metade da população não tem direitos garantidos e deve ser “protegida”, e a outra metade é formada por molestadores em potencial. Não servirá então para fomentar o conflito, a violência urbana e ampliar as oportunidades de desrespeito às mulheres na cidade?

Como podemos ver, o preço que se paga pela soberba, pela ausência de diálogo como conduta pública e pela absoluta falta de bom senso, pode ser muito caro. Afinal, queremos uma sociedade justa e que construa a igualdade efetiva de direitos entre mulheres e homens. Chega de medidas paliativas e populistas. Mais transporte público e de qualidade! É disso que precisamos.

O mais incrível é que na capital paulistana, o vereador autor desse projeto profundamente questionável é o líder da bancada do PT, partido que elegeu, juntamente com outros partidos coligados, Fernando Haddad à prefeitura de São Paulo – que criou a Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres na cidade e está, de modo firme, revolucionando a mobilidade urbana, para, aí sim, garantir o direito de ir e vir a todas as mulheres e homens, e promover uma convivência sadia e cidadã no espaço público.

O autor do projeto na cidade de São Paulo tem afirmado que haverá uma Audiência Pública, ainda sem data, antes da segunda votação, para debatê-lo melhor, e nos convida a participar. Seria um ótimo exemplo e postura de cidadania se o projeto fosse arquivado pelo autor, inibindo outras iniciativas semelhantes. Vamos todas e todos! Caso contrário, só nos restará um último recurso em favor da dignidade das mulheres: #vetaHaddad!

*Marta Regina Domingues é Secretária Estadual de Mulheres do PT/SP.




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